Uma Ciborgue no Movimento Open Source

Danny Tonidandel · August 30, 2022

Se um computador trava e apresenta a famosa “tela azul”, é até possível pensar que não seja um problema muito sério. Mas imagine, por um instante, que este sistema esteja controlando as batidas do seu coração, em um marca-passo instalado em seu peito. Imagine agora que este dispositivo esteja rodando um software proprietário.

O problema do código-fonte

O advento do computador e da internet, resultantes do imaginário coletivo e esforço da ciência, são criações que remodelam os próprios comportamentos humanos e as tendências da sociedade para o futuro. Entender essa dinâmica é, pela mesma razão, fundamental para se ter uma noção do real impacto causado por uma mudança científica ou tecnológica, sobretudo quando os sistemas tecnológicos começaram a se tornar parte essencial na manutenção da vida dos seres humanos. Assim, é interessante investigar quando as coisas não funcionam corretamente, isto é, o que acontece quando uma tecnologia não “funciona” como desejado? Para isto, vamos analisar o caso de uma verdadeira “ciborgue”, que teve, instalado em seu peito, um dispositivo com um sistema operacional proprietário.

Movimento do Código-fonte aberto. Movimento do Código-fonte Aberto (Open Source Initiative)

Desde cedo Karen Sandler se interessava por tecnologia digital e programação, chegando a conhecer a pré-histórica linguagem BASIC, além do FORTRAN e C. As linguagens de programação são responsáveis por codificarem a linguagem humana, ou uma forma extremamente reduzida da linguagem humana (a lógica), em sinais de tensão e corrente elétrica para que computadores, máquinas de uso geral, possam realizar uma tarefa específica. Expressões simples do tipo “se A… então B” são codificadas e traduzidas para a chamada “linguagem de máquina”, que os humanos não podem compreender.

Somado à interface que nos possibilita interagir com a máquina, um software criado a partir de determinada linguagem torna possível realizarmos atualmente coisas inimagináveis há 70 anos. Ainda na universidade, nos anos 1990 – ao se ver diante de um laboratório repleto de computadores executando o sistema operacional GNU/Linux – a jovem Karen Sandler chegou a pensar que software livre era uma boa ideia, mas que não iria durar muito (1). Até então, não imaginava que seu futuro profissional estaria ligado biologicamente ao futuro dos sistemas operacionais e do software livre como um todo.

Sistema Aberto vs Sistema Proprietário

Podemos imaginar um sistema operacional a partir da analogia com um automóvel: para que funcione corretamente, um carro precisa estar equipado com diversos componentes tais como carcaça, rodas, pneus, vidros, limpador de para-brisa e, claro, um motor. Uma carcaça sem motor pode até descer uma rampa, mas dificilmente um motor sozinho faria qualquer coisa. Da mesma forma é composto um sistema operacional: aplicativos e serviços, que representam toda a carcaça e peças fundamentais para o funcionamento do sistema e um kernel ou núcleo, que é motor ou coração do sistema, fazendo a comunicação do software com o hardware (a parte física do computador).

Os primeiros sistemas operacionais tem início na década de 1960, com o projeto Multics, que envolvia a gigante Bell Labs, da AT&T, a General Electric (empresa fundada por Thomas Edison, no século dezenove) e o projeto MAC do Massachussets Institute of Technology (MIT). Por não atingir seu propósito inicial, logo o laboratório Bell retira-se do projeto. Em razão de um jogo chamado Space Travel usado como passatempo durante o projeto Multics, dois engenheiros de software da AT&T, Ken Thompson e Dennis Richie, que não tinham mais acesso ao sistema, resolveram criar um sistema operacional rudimentar que possibilitasse a portabilidade do jogo em um computador PDP-7 (que custavam algumas centenas de milhares de dólares), que já não era mais utilizado. Desta forma nasceu o sistema operacional chamado Unics, como trocadilho ao Multics e que de alguma forma, passou a ser escrito posteriormente como Unix.

No início da década de 1970, o Unix é reescrito em linguagem C pelo criador da linguagem, Dennis Ritchie, fazendo com que seu uso dentro da AT&T crescesse tanto que um grupo de suporte interno para o sistema acabou sendo criado. Até aquela época, os chamados códigos-fonte eram livremente trocados na comunidade acadêmica, assim como fazemos com as receitas da culinária popular. Porém, com a popularização dos primeiros sistemas operacionais, rapidamente viu-se um grande filão mercadológico sendo criado.

Richard Stallman, um dos cientistas do MIT que haviam trabalhado no projeto, ao presenciar o “fechamento” do código do Unix pela AT&T, que advogara para si os direitos de propriedade sobre software, decide criar um movimento no qual seu produto base fosse um sistema operacional totalmente aberto e livre. Passo seguinte, Stallman pede demissão do Laboratório de pesquisas em Inteligência Artificial do MIT, em 1983, e inicia o projeto GNU, que visava a criação de um sistema operacional completo similar ao Unix. Como todas as ferramentas (linguagens de programação, compiladores etc) para desenvolvimento do sistema operacional estavam também indisponíveis, foi decidido que toda infra-estrutura fosse também desenvolvida. Assim, deu-se a fundação do projeto GNU e a criação da Fundação do Software Livre (FSF - Free Software Foundation) em 1983.

Alguns nos depois, um jovem estudante finlandês de nome Linus Trovalds, que havia desenvolvido um kernel para um sistema similar ao Unix (chamado Minix, que rodava em máquinas 386), chamando-o de Linux, que se integra ao projeto GNU. Em 1992 é publicada a primeira “distribuição” GNU/Linux. A acepção “livre” é baseada na forma de licenciamento (2), também idealizada pelo projeto GNU, em que o usuário possui as chamadas “5 liberdades”: liberdade de executar, copiar, distribuir, estudar, modificar e distribuir o software (3).

Uma Ciborgue no Movimento do Código Aberto

Somado à interface que nos possibilita interagir com a máquina, um software criado a partir de determinada linguagem torna possível realizarmos atualmente coisas inimagináveis há 70 anos. Ainda na universidade, nos anos 1990 – ao se ver diante de um laboratório repleto de computadores executando o sistema operacional GNU/Linux – a jovem Karen chegou a pensar que software livre era uma boa ideia, mas que não iria durar muito (1). Até então não imaginava que seu futuro profissional estaria ligado biologicamente ao futuro dos sistemas operacionais e do software livre como um todo.

Por ter sido diagnosticada portadora de uma condição cardíaca rara, que poderia levá-la à morte a qualquer momento, Karen se viu obrigada a utilizar um desfibrilador implantado em seu peito. Caso detectasse uma parada cardíaca, o dispositivo dispensaria choques elétricos como manobra de ressuscitação. Até aí tudo bem. No entanto, ao descobrir-se grávida, os problemas começaram. Por sua própria condição, a gravidez provoca alterações no ritmo cardíaco, como a aceleração nos batimentos para compensar a energia despendida na sustentação da vida fetal. Em virtude disso, o desfibrilador embutido não era capaz de “entender” o que se passava ao redor, assumindo, em virtude de sua programação, um comportamento estranho: dava choques elétricos no coração de Karen. Tais choques, por sua vez, ironicamente, a colocariam no centro dos holofortes do movimento do código fonte aberto e livre.

Por já possuir certa familiaridade com a questão dos sistemas computacionais, Karen resolve procurar o médico responsável pelo implante e questioná-lo a respeito de qual sistema operacional o dispositivo executava. Para sua surpresa, a paciente ouviu do médico, após um sinal de interrogação, que ele não tinha a menor ideia do que se tratava aquilo. Ao pesquisar um pouco mais, descobriu tratar-se de um dispositivo com software proprietário. Estava então instaurado o problema. E se o sistema travasse? Se apresentasse mau funcionamento, conhecido popularmente como a “tela azul”, bem comum nos sistemas operacionais mais populares?

Allan Chalmers já havia frisado que tecnologias são “formas de construir ordem em nosso mundo” (4). Mas qual é a natureza dessa ordem? O que frequentemente não pensamos é que as coisas técnicas possuem também qualidades políticas (5), i.e., nem sempre são projetadas única e exclusivamente com o intuito de resolverem um problema técnico, ou de saúde, mas também com o objetivo de impor certo padrão de autoridade ou controle. Como em uma obra de arte, caso se deseje encontrar um padrão, deliberado ou inconsciente, de controle em determinado sistema ou mecanismo tecnológico, será possível observar fatalmente os traços de carácter de seus idealizadores. Mas em um sistema de código fechado, uma “caixa-preta”, como ter conhecimento do que se passa em segundo plano?

Possivelmente Karen sentia que, assim como afirmou Heideger, “…~estaremos entregues à técnica quando a consideramos como neutra” (6). Por ter certo conhecimento da filosofia por trás do conceito de software livre, ela imaginava que um sistema de código aberto tem a tendência de ser mais seguro com o passar do tempo, por ser auditado por centenas (ou milhares) de entusiastas, profissionais e acadêmicos mundo afora. Uma “tela azul”, um travamento, significaria, em seu caso, a morte certa. O que fazer então?

Os médicos responsáveis pelo seu caso tentaram dissuadi-la, convencê-la a tomar remédios para diminuir os batimentos cardíacos, para seguir com a gravidez, o que, a contra-gosto, acabou acontecendo. A tecnologia implantada havia, de certa forma, se tornado autoritária (7). Em uma palestra proferida para ativistas brasileiros, anos depois (Campus Party, 2017), Karen afirmaria que seu problema cardíaco era, de certa forma, uma “metáfora para todo o software os quais somos todos dependentes, de alguma forma”. Mais adiante, afirmaria também que “não podemos confiar em empresas isoladas para nos proteger”.

Ao se “eleger” um dispositivo tecnológico para “governar”, ou melhor dizendo, decidir quando manter a vida orgânica, tem-se um universo similar, com a diferença de que o governante será, agora, um conjunto inacessível de regras (políticas), uma governança algoritmica, codificada pela figura de um programador ou empresa, protegido pelas leis de propriedade intelectual, o que forma de fato, a ideologia do código fechado, propalado sobretudo por empresas como a Microsoft e Apple.

Karen chegou a solicitar à empresa fabricante uma cópia do código-fonte, mas não obteve sucesso. Contudo, a negativa teria um efeito inesperado: com a recusa da empresa em disponibilizar o código que controlava o dispositivo e, indiretamente, sua própria vida, Karen seria, quase que imediatamente, transformada em uma das figuras mais mais potentes do Movimento Open Source: sendo advogada, ela iniciaria sua atuação no mundo do Open Source ao integrar-se ao projeto GNOME – responsável por desenvolver uma das interfaces gráficas mais conhecidas para sistemas operacionais GNU/Linux – e à Linux Foundation, uma das mais importantes organizações do movimento do software de código aberto no mundo.

2007.

  1. Bhartiya, S. Meet Karen Sandler, a force in open source. CIO from idg: tech News. Analysis, blogs, video (2017). Disponível em https://www.cio.com/article/234085/meet-karen-sandler-a-force-in-open-source.html. Acesso em 30 Ago. 2022.  2

  2. Com a licença padrão GNU GPL ou GNU General Public Licence. 

  3. Vale ressaltar que o termo em inglês causa frequentemente muita confusão, pois “free” também significa “grátis”, mas software livre não é o mesmo que software gratuito. 

  4. Chalmers, A. F. O que é ciência, afinal? Brasília: editora Brasilience, 1993. 

  5. WinnerL. Do Artifacts have politics? In __ . 1996. The Wale and the reactor – A search for limits in an Age of High Technology. Chicago: The University of Chicago Press. p. 19-39. 

  6. Heideger, M. A questão da técnica. Scientiæ Studia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 

  7. Mumford, L. Técnicas Autoritarias y Técnicas democráticas. Ciência, Tecnologia y sustentabilidad. El Escorial, 2004. 

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