A dama com a lanterna

Danny Tonidandel · May 12, 2020

O que uma modesta enfermeira de exatos 200 anos atrás tem a ver com a pandemia que assusta o mundo nos dias atuais? Como podemos nos inspirar em sua história para virarmos o jogo? A data de 12 de maio, dia Internacional da Enfermagem, celebra o nascimento de uma figura luminar para a ciência, responsável por salvar milhões de vidas em um período de extrema dor e agonia.

Sobre números e lavar as mãos

Nos final dos anos 1830, uma jovem menina inglesa recusa-se a contrair o matrimônio, como era o esperado em uma sociedade focada no poder masculino. Afirmava ela ter recebido um chamado divino para trabalhar em favor da humanidade. Florence, então com seus quase vinte anos, desejava se dedicar aos estudos e, após muita resistência dos próprios genitores, matricula-se oficialmente em uma escola de enfermagem. Alguns anos depois, quando irrompe o conflito na região da Crimeia, em 1854, Florence Nightingale se candidata a servir como enfermeira voluntária nos hospitais de campanha do exército britânico.

Sob pretexto de salvaguardar o sepulcro vazio de Jesus - motivo este que tem fomentado guerras ao longo de dois milênios - o império do czar Russo Nicolau I invadiria os principados que ficavam às margens do rio Danúbio (atual Romênia), região dominada pelo Império Otomano (atual Turquia), que já se encontrava em decadência. Seria o início de um conflito colossal: com o objetivo de deter a expansão russa, os Otomanos ganham apoio da monarca Victória, da Inglaterra, além da Sardenha (atual Itália) e França, momento em que se deflagra a guerra sangrenta, que aconteceria na península da Crimeia, região do mar Negro.

Liderando um pequeno grupo composto por 38 jovens auxiliares, em meio à Batalha de Balaklava, região norte do Mar Negro (atual Ucrânia), Nightingale passeia pelas noites, visitando os pacientes dos acampamentos, tendo à mão apenas uma lanterna de óleo acesa. De leito em leito, percebe o precário estado dos feridos. Constata que a maioria dos soldados ali perdia suas vidas não apenas em consequência das complicações causadas pelos ferimentos, tais como infecções, mas também de febre tifoide, cólera, disenteria… as péssimas condições sanitárias e a má nutrição dos soldados eram alguns dos motivos principais das mortes.

Mas como poderia, uma jovem senhorita, em plena era Victoriana, época em que se não conheciam as bactérias e os vírus, convencer todo um meio dominado pelo pensamento feroz da guerra? Somente na década de 1880 que Louis Pasteur faria uma de suas grandes descobertas sobre as vacinas, que dariam suporte à existência dos microrganismos. Até então, se pensava que uma batalha era vencida com braços e armas, bombas e generais, jamais com papel e caneta.

Por acaso, ou, quem sabe, providencialmente, Florence era também um prodígio da Matemática. Sabendo que uma imagem teria maior impacto no ato de informar e convencer os descrentes de seus métodos, a enfermeira realiza um estudo estatístico, pioneiro até aquele momento, em que busca evidenciar a importância dos cuidados básicos aos pacientes, a partir das evidências científicas. Para isto, utiliza uma representação visual, hoje chamado de infográfico, na forma de um diagrama de rosas ou diagrama polar, que é um tipo de histograma:

Diagrama das causas de mortalidade do exército leste (1854). Nele, Florence Nightingale (1854) buscou evidenciar, a partir das evidências, as principais causas da alta mortalidade entre os combatentes.

Florence chamava os gráficos de “coxcomb”, sendo que fez deles uso extensivo, especialmente ao enviar dezenas de cartas aos membros do parlamento britânico (câmara dos Lordes e câmara dos Comuns) e à sociedade civil em geral, que dificilmente conseguiria entender os relatórios técnicos especializados da época. Com este trabalho, ela não apenas se tornou a primeira mulher a integrar a Royal Statistical Society, mas também salvou incontáveis vidas.

As medidas propostas eram simples e a mensagem imensamente clara: sua estatística da guerra convenceu as autoridades em geral de que abordagens menos invasivas, como melhorar as condições sanitárias e de nutrição eram mais efetivas do que poderiam representar um aporte nos suprimentos médicos, ou um aumento do número de profissionais. Isto é, lavar as mãos, filtrar a água, dar banho, roupas limpas, comida a quem tem fome.

Curiosamente, estamos vivenciando um momento muito semelhante, sobretudo no Brasil, com a pandemia causada pelo novo coronavírus. Que o exemplo de Florence Nightingale seja inspiração para as lideranças políticas do solo brasileiro, de forma que os tristes números do momento sejam razões suficientes para que se abandone o pensamento mágico que ainda impera, em favor de milhões de vidas que ainda podem ser salvas no mundo.

Fazer ciência não é ato político, é economia de pensamento, como disse Ernst Mach. Que as políticas baseadas em evidências científicas possam guiar as decisões de nossos líderes, de forma que tenhamos pessoas para contar essa história, daqui a 200 anos.

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