Da Natureza das Coisas

Danny Tonidandel · December 13, 2019

Nil pose criari nihilonada pode surgir do nada. Esta frase poderia ter saído de um dos contos de Voltaire, entre os quais o autor costumava afirmar que o acaso nada mais era do que a causa ignorada de um efeito desconhecido, mas não: esse princípio hoje esquecido partiu de um grande poeta e filósofo do primeiro século, Titus Lucretius Carus (99 a.C.–55d.C.), em seu poema De Rerum Natura (Sobre a Natureza das Coisas). A tentativa simbolizava o espanto ante o enigma da natureza, mas era também uma tentativa de abolir o misticismo das explicações anteriores e superficiais sobre os fenômenos da vida. E na Ciência Antiga, um dos elementos essenciais para a busca da verdade passava certamente pela ideia de fluxo, movimento e emanação.

Da natureza das coisas

A filosofia pós-Aristóteles ganharia novos ares a partir do terceiro século antes da era Cristã. Neste ponto não mais se poderia pensar nas grandes cidades-estado gregas, especialmente após a ascensão de Alexandre (“o grande”) da Macedônia, que teria sido, inclusive, aluno do próprio Aristóteles no Liceu. Após Alexandre, o chamado período helenístico Romano vê florescer, ao longo de quase 1500 anos, uma série de escolas devotadas ao conhecimento e o início do cultivo de ciências específicas. No primeiro período, compreendido entre 300 a.C. e o primeiro século d.C, vê-se o surgimento das filosofias estoica e epicurista, que foram contemporâneas. Lucretius foi um poeta seguidor de Epicuro e, no célebre poema Sobre a Natureza das Coisas, ele se mostra não apenas filósofo, mas também uma espécie de físico teórico pioneiro, mas com um ligeiro detalhe… suas teorias eram apresentadas com métrica e rima!

Lucretius apresenta sua ideia de emanação afirmando que não apenas a luz, mas todas as coisas perceptíveis, deveriam ser expressões de uma natureza pré-existente. Para o fenômeno da visão, em particular, a teoria apoiava-se na hipótese de que um material seria visualmente percebido por ter desprendido de si alguma parte, como uma casca ou réplica de seu formato externo, isto é,

(…) Primeiro, deve haver de todos os corpos que nós vemos um perpétuo fluxo, uma emissão, um emanar de elementos que nos impressionam os olhos e os movem à visão. Perpetuamente fluem os cheiros de certos corpos, como o frio sai dos rios, o calor do Sol, e das ondas do mar, a vaga que vai roendo os diques do litoral.(1)

Esses elementos seriam, justamente, os átomos, mas não a concepção presente do átomo, que a ciência começou a desvendar há cerca de um século, mas aquela partícula indestrutível e impenetrável que foi concebida no pensamento antigo. Por essa propriedade, Lucretius acreditava que o movimento só era possível se, além do átomo, existisse também o vazio (2), que seria hoje algo próximo à ideia de vácuo:

(…) Nem, no entanto, tudo se mantém, por toda parte, condensado
Por ser de natureza corpórea, pois há nas coisas um vazio.
Pois para ti será útil ter conhecimento em muitas coisas,
E isso não permitirá, errante, hesitar e questionar sempre
Da soma das coisas, e desconfiar das nossas palavras.
Por isso o vazio é um lugar inalcançado e vago. (…)

O vácuo, assim como mostrei na primeira linha desse post, não tinha relação alguma com “o nada”, ou, em suas palavras, “(…) daí sucede que o que a natureza desfaz novamente em seus elementos, não o extingue para o nada (…)”, que é assunto para outra discussão. Mas vamos a um trecho subsequente, esse traduzido sem perder a beleza da feição poética, em que Lucretius afirma a existência dos átomos por seu contraposto, “O invisível”:

(…) Além disso, ainda que as coisas se julguem ser sólidas,
Daí, contudo, é lícito que percebas que as elas são com corpo rarefeito.
Nas cavernas rochosas o humor líquido das águas
Infiltra-se, e tudo flui em abundantes gotas.
O alimento se dissipa por todo corpo dos viventes,
As árvores crescem, e os frutos se difundem no seu tempo,
Porque o alimento se difunde desde as profundas raízes
Até as partes inteiras: por troncos e por todos os ramos.
Entre divisórias permeiam as vozes e voejam pelos cômodos
Da casa, e o rígido frio penetra até os ossos,
Porque se não houvesse vazios, por onde quaisquer corpos
Pudessem atravessar, por nenhuma razão verias acontecer.(…)

Essa ideia da percepção das coisas como movimento de algo material que se desprende de um todo seria retomada e reelaborada em diferentes ocasiões ao longo da história. Essa, assim como outras analogias, formariam as bases das teorias de propagação da luz, do calor e dos fenômenos estáticos de atração elétrica e magnética na “Revolução Científica” (séculos XVII e XVII) - como arcabouço herdado da ciência grega. Tais ideias permearam o pensamento científico de todas as épocas e, mesmo na ciência contemporânea, onde uma espécie de renascimento do atomismo clássico está em pleno vigor, sobretudo com a mecânica quântica, isso ainda acontece. Parafraseando Agostinho, se pudesse, diria que os físicos de hoje são os atomistas de ontem… (3) entretanto, esse é um longo salto, impossível de ser dado em simples recorte. Que fique então como breve pensamento.

  1. Carus, T. L. Da Natureza, In: Os pensadores. Ed. Victor Civita, 3. ed., Trad. de Silva, A. São Paulo: Nova Cultural, 1985, livro VI, p.270. 

  2. Carus, T. L. De Rerum Natura - Livro I. Trad. introd. e notas de J. A. Maia Jr, H. O. D. Vieira, F. S. Almeida (tradutores do Latim para o Português). Bilingue.João Pessoa: Ideia, 2016. Disponível em: https://bit.ly/2DZLaEZ

  3. Santo Agostinho (354-430) foi um dos membros ilustres da escola Neoplatônica de Alexandria e ficou conhecido como um dos pais da Igreja. Em referência à obra de Plotino (204-270), que também se celebrizou pela mesma escola, Agostinho teria afirmado que: “(…) Se pudesse, diria que Platão é Plotino (…)” 

Twitter, Facebook